MEMÓRIAS DAS BANDAS QUE PASSARAM
PALMARI LUCENA
Mostruários e prateleiras bem abastecidos. Secos e molhados, sempre bem observados e cuidados por seu Quirino, formavam uma barricada alimentícia separando o balcão e o freguês. Coexistiam em um lugar privilegiado da comunidade a mercearia e a residência do proprietário. Ilha do Bispo, assentamento humano fundado pelos portugueses em 1585, sem a menor atenção ou respeito ao meio ambiente. A aldeia de Piragibe, o cacique dos Tabajaras, não era mais. História aterrada nas margens dos rios e manguezais que a cercam, hoje uma das áreas mais carentes da cidade. Sempre esquecida.
Comemoração de aniversário, até nos esquecemos de quem. Memória limitada de criança, amnésia calórica provocada por bolo e guaraná ofuscou o nome do aniversariante. Perguntamos a familiares mais idosos. Decidimos que a festa era para a comadre Ana, dona Nana de seu Quirino. Nossa suspeita baseada no fato de que a parte musical havia sido organizada por seu irmão Quincas e o compadre Sargento Lucena, respectivamente mestre e trombonista da afinadíssima banda de música do 15º RI. O coral do Abrigo de Menores juntou-se ao programa cantando canções folclóricas nordestinas. Dia inesquecível, o bolo então… Voltamos muitas vezes à Ilha do Bispo dos Quirinos.
Qualquer ano da nossa infância, dia sete de setembro. Palanque recheado de autoridades civis, militares e eclesiásticas. Banda militar marchando, saltos dos coturnos ressoando em cadência rítmica. Rostos suados e instrumentos de metal brilhando à distancia. Massa humana cheirando a patriotismo. Acordes de um dobrado militar ecoando no corredor estreito da rua Duque de Caxias em direção à praça João Pessoa. Estuário do poder, repositório das águas de todos os rios. Liderando sua banda briosamente, o maestro Quincas, sargento Joaquim Pereira, para o Exército. Rosto gentil, porte militar. Gesto elegante de continência. As mãos delicadas de um artista não carregavam as marcas de uma juventude dura, aprendiz de carpinteiro em Caiçara. A banda passou…
Músicos tocando seus instrumentos… Travanquinha, Usura, Deco, Capote, Assis, Zica, Lucena e seus companheiros preparavam-se para o último ensaio sob a batuta do Mestre Quincas. Promovido a tenente e nomeado para dirigir a banda militar da Academia de Agulhas Negras. Partiu a caminho do Sul, carregando na sua bagagem de nordestino o dobrado ¨Os Flagelados¨. A música, seguindo seu criador, espalhou-se pelo mundo. Música para os excluídos. A banda continuou tocando…
Anos depois. A banda ¨Cinco de Agosto¨, da Prefeitura Municipal de João Pessoa, marchava tocando ¨Os Flagelados¨, do Mestre Quincas, sob a direção do Tenente Lucena. Membros da confraria de filhos de filarmônicas interioranas e bandas de música militares. Alguns fugiram da seca, flagelados musicais. Poucos ainda estão entre nós, muitos esquecidos.
Suplementos culturais, crônicas e até pronunciamos de políticos lembram-nos ocasionalmente dos músicos da nossa terra. Dobrados, valsinhas e canções que fizeram nossas praças mais humanas. Tentam libertá-las das garras dos viciados, delinquentes e assaltantes. Lógica estranha: cuidando da memória enquanto estamos prestes a perdê-la. Propõe-se o resgate de nossa herança cultural, música, folclore. E os que passaram? Carpinteiros, açougueiros, balaieiros, caiadores, mecânicos e outros que se transformaram em músicos, criadores de nossa memória musical. Serão respeitados, valorizados, preservados? Eles nos ensinaram sobre as possibilidades que começaram como sonhos. Joaquim Pereira, o Quincas das valsinhas inocentes, como um ósculo de mãe; o retratista musical da miséria dos flagelados; o carpinteiro que converteu sua régua de prumo em uma batuta de maestro. Será que vamos esquecê-lo?